Mudança(s)


Mudança do lado de fora...

Criança sempre reclama de escola, mas está tão acostumada com a ideia de que terá que passar anos e anos nela para “ser alguém na vida” que se apega ao que há de melhor para suportar todo o resto: as amizades que faz. No grupo eu sempre fui a mais tímida, a mais baixa, a mais nova, e estava entre aqueles que tinham as melhores médias. Da alfabetização até a terceira série (nomenclatura antiga, sei lá como é isso hoje) estudei numa escolinha de bairro, depois mudei para um colégio maior e fiz amizades, me adequei bem, estava muito feliz ali.

Morava perto de onde estudava, mas minha mãe sonhava em voltar para o bairro onde ela cresceu, até que chegou o dia: levar apenas dez minutos até o trabalho era só uma das vantagens. Eu, como uma criança de 11 anos, adorava meu bairro por ser livre para andar de bicicleta com minha irmã na garupa, ter as amigas por perto e uma casa enorme para brincar... não seria fácil a mudança, mas seria ainda pior por um motivo: eu seria transferida no meio do ano letivo para outro colégio.

Rejeitei logo que soube e apesar dos esforços de todos, eu não cedia; não queria ter que entrar numa nova escola com panelinhas já formadas, não queria ser a diferente, largar as minhas amigas, ter outros professores. E assim que elas souberam juntaram-se a mim. Aquela das ideias mirabolantes criou um plano que colocamos em prática de imediato: uma greve de fome. Eu não sabia como ia suportar, mas tudo para não mudar de colégio. Aquino não era para confrontar diretamente, mas para demonstrar o máximo de sofrimento possível no silêncio. Criamos um código de comunicação: um toque no telefone se estava dando certo, dois toques se não estivesse.

Fui direto para o quarto, minha tia me chamou para almoçar, e eu recusei. Fiquei procurando o que fazer entre aquelas paredes e nada de muito interessante me aparecia... e a fome começava a apertar. Minha amiga ligou pedindo informação – era nosso código. Respondi que estava tudo ok e voltei para o quarto. A fome era enorme, mas eu não podia ceder, tinha que lembrar todas as palavras de força que escutei antes de sair do colégio e resistir até minha mãe chegar! Procurei na mochila o resto do lanche – droga, comi quase todo no intervalo...

O tédio reinou e revelou o tamanho da fome. Na ponta dos pés, vi minha tia distraída na sala. Voltei no mesmo silêncio até a cozinha e chequei as panelas, a comida era das minhas preferidas... Peguei um prato, coloquei pouca coisa para não perceberem a diferença, e desliguei o microondas antes que ele apitasse escandalosamente. Comi o mais rápido que pude, lavei o prato e voltei para o quarto. Agora eu esperaria até o outro dia, se necessário. Minha mãe chegou e logo bateu na porta, minha tia tinha avisado que fiquei lá o dia todo sem comer. “Tá fazendo greve de fome é, filha?” Obviamente neguei, eu tinha que escancarar o quanto sofria sozinha. Primeira parte do plano: concluída.

A segunda parte foi ideia de outra amiga que aos 12 anos já mostrava sua alma revolucionária: um abaixo-assinado. Devidamente estruturado, explicando detalhadamente minha situação, seriam colhidas assinaturas do máximo de pessoas possíveis e seria endereçado à minha mãe. O papel passou pela tia da cantina, por colegas de várias classes, professores, secretaria, diretora, conseguimos muitas assinaturas e vários recados para minha mãe. O colégio quase todo se mobilizou pela causa. Segunda parte: concluída.

A última parte era uma carta para ela, escrita por mim. Fiz por conta própria, disse como me sentia em relação àquilo, e coloquei junto ao abaixo-assinado na cômoda dela. Quando ela leu, me chamou para conversar. Disse que entendia o quanto era difícil, e diante de tanta resistência, falou da possibilidade de que eu fosse para o colégio de ônibus. Disse que também não era algo simples: teria o custo do transporte, a responsabilidade de cuidar da minha irmã menor, o compromisso de acordar mais cedo. Eu não me importava com nada disso e aceitei o desafio. Após uma conversa com meu pai, isso ficou acertado.

Uhu, vencemos!



...mudança do lado de dentro
 
A partir de então minha rotina era acordar cedo e criar estratégias para minha irmã fazer o mesmo, depois mais estratégias para que ela andasse rápido até o ponto para não perdermos o ônibus (apesar das brigas, dava certo), prestar atenção onde a gente desceria, ir direto para escola e avisar a minha mãe quando chegasse (só no início). Na volta, convencer minha irmã a parar de correr no pátio e ir embora (esqueci dela uma vez, mas foi só uma vez, lembrei antes de chegar ao ponto!) e ir direto para casa.

Não sei como minha mãe lidava com toda essa mudança. Mas foi, com certeza, o pontapé inicial para a criação de uma maior autonomia e responsabilidade para mim.



Na casa nova, aniversário com as idealizadoras (as duas da esquerda)
Somos as Spice Girls! (risos)

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